“Se se soubesse o que se passa na administração pública, pegávamos em enxadas, roçadouras, picaretas e haveria uma revolução. Ninguém tenha dúvidas!”. A afirmação foi do bastonário da OCC, no arranque dos trabalhos.
Domingues Azevedo defendeu que o atual sistema do Estado “faliu” e deu um exemplo concreto: “No dia 31 de dezembro de 2014, havia um valor de reembolsos de IVA que estavam suspensos, ou seja, em análise. No dia 31 de dezembro de 2015, esse valor cresceu para 308 milhões de euros! Como é que qualquer cidadão pode conhecer quais são as responsabilidades do Estado? Há 308 milhões de euros e ninguém sabe onde isso está? Quem é que vai pagar isso?”.
Com este caso concreto, o bastonário procurou alertar para a necessidade de avançar com muitas mudanças com vista à boa governação. Até porque as “decisões incorretas no sector público são pagas por todos nós”, sublinhou na conferência organizada pelo IPCA e pela OCC, a 3 de junho.
Embora não tenha hesitado na hora de apontar o dedo, Domingues Azevedo avisou que a questão “não diz respeito apenas a algumas pessoas que estão fechadas no Terreiro do Paço”. “Não nos podemos alhear”, alertou, acrescentando que “ao não nos importarmos, somos coniventes com esses erros”. “Temos que interiorizar as boas práticas. As grandes coisas são sempre o somatório de pequenas coisas”, concluiu.
Outra das intervenções que mais captou a atenção da plateia foi a do fundador e chairman da Salsa. Numa intervenção muito descontraída, Filipe Vila Nova, contou que a estrela da sorte da Salsa – empresa de vestuário portuguesa com sede em Famalicão e que hoje fatura mais de 100 milhões de euros por ano, encontrando-se no top 5 mundial das marcas de jeans -, foi, ironicamente, uma inspeção tributária. No momento em que o Fisco lhe bateu à porta, percebeu que se teria de levar a “dimensão contabilística e fiscal” a sério. Caso contrário, corria o risco de “acabar com os sonhos e simplesmente fechar a empresa”.
Depois desta introdução e em linha com o que defendeu o bastonário na abertura, Vila Nova afirmou que “se todos tivéssemos a preocupação de ser melhores no dia-a-dia o país seria mais competitivo e todos teríamos a ganhar, nomeadamente pagando menos impostos”.
Presidente do Conselho
de Finanças Públicas
Teodora Cardoso, uma das mais reputadas economistas portuguesas, arrancou a conferência magna por dizer que “se os homens fossem anjos, não havia governo”, concluindo que “os homens não são anjos e, por isso, são precisas regras, logo governo”. Mas esses governos e as leis que produzem também precisam de ser fiscalizados e nem sempre o são eficazmente, afirmou a presidente do Conselho de Finanças Públicas – um dos organismos que fiscaliza as contas do Estado.
Teodora Cardoso defendeu ainda que na área das boas práticas de governação e do reporting “as grandes empresas estão descansadas”, visto que têm departamentos jurídicos e contabilísticos que asseguram que tudo funcione. Já as microempresas são tão pequenas que passam ao lado das regras e até das leis, até porque ninguém verifica se estão a cumprir. O ‘calcanhar de Aquiles’ está mesmo nas PME. “Quem fica mal são as pequenas e médias empresas que se querem integrar na cadeia de valores, mas encontram muitos obstáculos. O Estado legisla como se tudo fosse uniforme. O legislador sabe pouco sobre as empresas”.
Práticas e reporting
de boa governação
Soraia Goncalves, diretora da ESG, explicou que na génese dos obstáculos à boa governação está “o homem económico”. “Os políticos buscam a reeleição e não a maximização do interesse público, sejam os burocratas, como qualquer outra pessoa, que em regra geral procura satisfazer os seus interesses próprios e não os interesses da sociedade”, disse. E essas são realidades incontornáveis que constituem entraves e que fazem com que o controle da ação destes agentes, o reporting, seja fulcral.
Soraia Goncalves deu assim o mote para o primeiro painel, subordinado ao tema “Práticas e reporting de boa governação social e ambiental”. Ana Cláudia Coelho, diretora de Sustainable Business Solutions da PricewaterhouseCoopers defendeu que “o mundo está a mudar e que os negócios têm de considerar os impactos financeiros e as megatendências não financeiras”. Neste sentido, “cada vez mais, o valor das empresas inclui outros aspetos para além dos financeiros”, tais como a vertente social e ambiental. As empresas líderes em sustentabilidade apresentam melhores resultados, repetiu várias vezes Soraia Gonçalves, que revelou que “o Reporte Integrado combina a informação financeira e informação de sustentabilidade num único relatório” e que este é claramente o futuro.
Helena Gonçalves, professora da Católica Porto Business School, trouxe exemplos ‘fora da caixa’ para explicar a necessidade de olhar com mais atenção para o “reporting não financeiro” já que há muito mais vida além das contas. “Prevê-se que em 2025 metade da população portuguesa venha a ser obesa”, neste ano, “dois em cada três cidadãos viverão em grandes cidades”, realidades que têm que ser tidas em conta na hora de falar de boa governação. A componente ambiental é também já incontornável. Neste sentido a docente surpreendeu a audiência ao mostrar que são precisos 140 litros de água para uma banal chávena de café e cerca de mil litros para a produção de um litro de leite.
António Marques, presidente do Conselho Geral do IPCA, e também líder da Associação Industrial do Minho, defendeu, por seu turno, que só existe “boa governação” se essas “boas práticas” estiverem enraizadas. Por esse motivo, o “mundo académico não pode estar distante do mundo real também nesta matéria da contabilidade e fiscalidade. E como esta conferência é exemplo, o IPCA está no caminho certo”, concluiu António Marques.
Os desafios do SNC-AP
para a boa governação pública
“Os desafios do SNC-AP para a boa governação pública”, foi o mote escolhido para iniciar a tarde, num painel moderado pelo jornalista Fernando Alves, da TSF.
A primeira intervenção pertenceu a Maria José Fernandes, docente da ESG e diretora do Centro de Investiga~çao em Contabilidade e Fiscalidade do IPCA, que se debruçou sobre «Os contributos do SNC-AP na promoção da “accountability”». Enfatizando a necessidade do engagement entre academia, profissionais e as instituições públicas, a professora do IPCA considerou ser este modelo adaptado como “mais completo”, tornando-se um “chapéu para toda a administração pública”. Contudo, pôs água na fervura para controlar os entusiasmos desmedidos. “Não tenhamos ilusões. O período de transição para avaliar resultados será longo à semelhança do que aconteceu, por exemplo, em Inglaterra”. De uma coisa, a docente tem certeza: “Ser contabilista público será diferente de ser contabilista no setor privado”.
O consultor Pedro Mota e Costa defendeu que o SNC-AP permite “uniformizar procedimentos e aumentar a fiabilidade da consolidação de contas”, reaproximando-as das práticas do setor privado. Os acetatos eram dezenas, mas o professor universitário preferiu centrar a sua exposição nos atrasos que o processo está a registar. “Estamos em junho e falta publicar muita coisa”, referiu, confidenciando que, sempre que é contactada, a tutela argumenta que os documentos aguardam despacho do secretário de Estado do Orçamento.
Já o bastonário da OCC, Domingues de Azevedo, defendeu que este profissional “deve ser uma pessoa inscrita na Ordem”, devendo ser exigida «formação de base” e “conhecimento de matérias e conceitos relacionados com a administração pública”. Justificando que só se terão contabilistas públicos eficientes e à altura dos acontecimentos com uma “formação específica sobre o SNC-AP”, o bastonário abordou ainda o plano de formação apresentado pela entidade reguladora à tutela, que consta de 132 horas e 6 blocos formativos. “Uma formação de caráter específico é muito importante para evitar fricções entre a tutela e os contabilistas públicos”, acrescentou.
Boa governação fiscal
Ana Maria Rodrigues, professora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, moderou o segundo painel sobre “Boa governação fiscal”. Coube à partner da PricewaterhouseCoopers, Rosa Areias, debruçar-se sobre os códigos de conduta fiscal nas empresas. As empresas multinacionais na mira da justiça por falta de transparência, foi um dos temas abordados.
Por um impedimento de última hora, Clotilde Celorico Palma foi substituída por Fernando Persotam. A exposição foi da autoria da ausente, mas foi o diretor de finanças adjunto quem deu a voz à apresentação sobre “o controlo dos regimes prejudiciais na UE e na OCDE”.
Falou-se sobre as diversas vias de planeamento fiscal e o respetivo combate às formas mais agressivas da sua prática, através da estratégia de “seguir o dinheiro”. Contudo, a experiência não é fácil, até porque com o bitcoin e outros subterfúgios, “não há bancos, não há dinheiro físico e o dinheiro fica na cloud“. A troca de informações é, pois, cada vez mais imperiosa. Estava dado o aperitivo para a intervenção que se seguiu, a cargo da mesma pessoa, Fernando Persotam. Em nome próprio. E precisamente sobre “o combate à evasão fiscal internacional: a troca automática das informações financeiras”. O diretor de finanças adjunto admitiu que “tem havido evolução” na perseguição ao dinheiro e quem dele beneficia efetivamente e referiu como provável que “o sigilo bancário pode ter os dias contados”.
A cerimónia de encerramento contou a presença na primeira fila de Helena Borges, diretora geral da Autoridade Tributária, que acompanhou o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Antes das intervenções finais, Liliana Pereira, professora da Escola de Gestão do IPCA, leu uma curta mensagem, agradecendo a todos os intervenientes e demais presentes.
António Marques, presidente do Conselho Geral do IPCA, destacou a importância de uma iniciativa em que o IPCA “deu as mãos a uma Ordem de excelência, em nome do rigor e das empresas que prestam contas”. Por seu turno, Domingues de Azevedo referiu que “envolver a academia é uma missão da Ordem”, sendo que o “aprofundar da parceria com as instituições de ensino superior é um caminho a prosseguir”. Miguel Costa Gomes, presidente da Câmara Municipal de Barcelos, dissertou sobre a gestão pública como “ato de confiança que importa preservar”.
A terminar a sessão, Fernando Rocha Andrade fez a sua estreia como governante em Barcelos. O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais falou sobre as discussões em torno do sistema fiscal, as escolhas que são necessárias fazer e os critérios de justiça na repartição. Como o tema da evasão fiscal internacional está na ordem do dia, Rocha Andrade não driblou a questão, considerando casos como os do Panama Papers, uma “ameaça à igualdade tributária e prática corrosiva da legitimação do imposto”. O SEAF acrescentou que é com casos desta magnitude que deixam a comunidade com a convicção de que “o Estado é forte com os fracos e fracos com os ricos”.